LITERATURA DO AFETO: SEGREDO DO LEITOR-VORAZ
HART, Rosane. (UFSC)
“Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?”
(Carlos Drummond de Andrade, Procura da poesia)
Há muitas teorias para
explicar os processos que envolvem a aquisição da leitura e, consequentemente,
a formação de leitores. No entanto, vou me ater a definição que está nos
documentos oficiais e, portanto, aquela que norteará o ensino. Segundo os PCNs “A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de
construção do significado do texto, a partir dos seus objetivos, do seu
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo que sabe sobre a linguagem
etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra
por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção,
antecipação, inferência e verificação, sem os quais não é possível
proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai
sendo lido, permitindo tomar decisões diante das dificuldades de compreensão,
avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas (in:
PCNs: terceiros e quartos ciclos de EF: Língua Portuguesa/Secretaria de
Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 69-70). Portanto, temos ai o
conceito de 1º) leitor-decodificador como sendo aquele que extrai informação,
decodificando letra por letra, palavra por palavra e 2º) do leitor eficiente
como sendo o indivíduo capaz perceber e dar conta das estratégias necessárias à
leitura que são: as estratégias de seleção, antecipação, inferência e
verificação, sendo assim um leitor eficiente, pois têm a proficiência da
linguagem. Já o terceiro leitor é o leitor-voraz, configurado até este momento da
mesma maneira que o leitor eficiente.
Já temos então uma breve
explanação sobre leitura e sobre leitores. Agora vamos à observação e ao relato
da experiência.
A referida observação/acompanhamento aconteceu na Escola de Educação Básica José Boiteux, situada na região continental de Florianópolis (SC), mais precisamente no bairro Estreito. A escola, fundada em 1934, atende uma clientela variada e tem também um trabalho pioneiro relacionado à inclusão de crianças com necessidades especiais na rede estadual de ensino. Preparem-se lá vem a história: era 2007, a escola recebe uma turma de 22 alunos para o pré-escolar. E a história começa e (quase) termina em 2014, coincidentemente, também com 22 alunos. Quase porque essa história ainda está se (re)(des) construindo. Durante esse período de sete anos observei, acompanhei, participei juntamente com os professores e mais tarde como professora da turma. E em 2013 quando esses alunos, não mais os mesmos 22 alunos que entraram no pré-escolar (daquela turma eram somente 14 e mais 8 alunos novos) chegaram ao Ensino Fundamental II me intrigou a quase – unanimidade – gostava de ler, diferentemente da turma do 9º ano quase alheia à leitura e a Literatura. O que poderia ter havido pelo caminho. Tinha algumas pistas: trocas de experiências constantes entre os professores, planejamento coletivo, formação com professores da área de Letras, incentivo à leitura, compra de livros pela Associação de Pais e Professores, institucionalização da aula de leitura, coleta de material reciclado para aquisição de livros entre outras coisas. Mas esse mesmo movimento que atingia a todos os alunos, não provocava os mesmos efeitos neles. Havia algumas diferenças, um brilho diferente. Para tentar encontrar o ponto de diferenciação construí com eles as memórias de leituras. Elas foram reveladoras. Surgiram duas categorias ou grupos com as seguintes características:
A referida observação/acompanhamento aconteceu na Escola de Educação Básica José Boiteux, situada na região continental de Florianópolis (SC), mais precisamente no bairro Estreito. A escola, fundada em 1934, atende uma clientela variada e tem também um trabalho pioneiro relacionado à inclusão de crianças com necessidades especiais na rede estadual de ensino. Preparem-se lá vem a história: era 2007, a escola recebe uma turma de 22 alunos para o pré-escolar. E a história começa e (quase) termina em 2014, coincidentemente, também com 22 alunos. Quase porque essa história ainda está se (re)(des) construindo. Durante esse período de sete anos observei, acompanhei, participei juntamente com os professores e mais tarde como professora da turma. E em 2013 quando esses alunos, não mais os mesmos 22 alunos que entraram no pré-escolar (daquela turma eram somente 14 e mais 8 alunos novos) chegaram ao Ensino Fundamental II me intrigou a quase – unanimidade – gostava de ler, diferentemente da turma do 9º ano quase alheia à leitura e a Literatura. O que poderia ter havido pelo caminho. Tinha algumas pistas: trocas de experiências constantes entre os professores, planejamento coletivo, formação com professores da área de Letras, incentivo à leitura, compra de livros pela Associação de Pais e Professores, institucionalização da aula de leitura, coleta de material reciclado para aquisição de livros entre outras coisas. Mas esse mesmo movimento que atingia a todos os alunos, não provocava os mesmos efeitos neles. Havia algumas diferenças, um brilho diferente. Para tentar encontrar o ponto de diferenciação construí com eles as memórias de leituras. Elas foram reveladoras. Surgiram duas categorias ou grupos com as seguintes características:
Grupo 1 – A família como formadora de
leitores
Aluna 1 “Meus
professores liam quadrinhos da Turma da Mônica. Meu pai lia pra mim histórias
da série vagalume e também o Pequeno Príncipe. Lia também Armandinho um
quadrinho que está todos os dias nos jornais, ele é muito irônico”.
Aluna 2 “Eu
nem sabia ler e já ficava folheando gibis. Minha mãe lia pra mim O tempo e o vento. Eu não cheguei a ler,
mas meu personagem favorito era o Rodrigo Cambará. Não sei porque gosto dele,
deve ser pelo jeito”.
Aluno 3
“Minha mãe me ajudava nas letras e me mostrava as figuras, ficava tentar ler
até dormir”.
Aluno 4
“Adorava os quadrinho do Homem-aranha (...) minha mãe sempre comprava as
revistinhas pra mim”.
Grupo 2 – A escola como formadora de
leitores
Aluna 1
“Gostava da Branca de Neve, eu achava a personagem interessante pela sua
relação de amizade com os sete anões. Também gostava da Cinderela pela sua
história de superação”.
Aluno 2 “O
que me marcou foi a Turma da Mônica. Adorava ver o Cascão e o Cebolinha
apanhando dela. Depois me lembro dos quadrinhos da Marvel: Super-homem, Batman
(...)”.
Aluna 3
“Gostava das histórias da Turma da Mônica, pois eu e meu irmão a comparávamos à
minha irmã e o Cascão ao meu irmão”.
Aluna 4
“Gostava e ainda gosto/amava a Pequena Sereia, turma da Mônica, Chapeuzinho
Vermelho, Aladim, Bela Adormecida, A Bela e a Fera. Porque eu gosta e ainda
gosto, não sei porque, só gosto”.
Aluna 4
“Adorava a Bela e a Fera (...) A professora da creche contava muito essa
história – eu sempre pedia – isso ficou na minha memória”.
Aluna 5 “
(...) A pequena sereia, Três porquinhos, Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve,
Cinderela, A Bela e a Fera (...)”.
Aluna 6 “No
quarto ano, minha professora lia um livro pra nós todos os dias. Lembro mais do
Menino do Dedo Verde. Eu amo o Tistu pelo jeito dele pensar, de querer
transformar tudo em flor. Hoje meus livros favoritos são: O mundo de Sofia e A
culpa é das estrelas”.
Aluno 7
“Gostava muito do Menino Maluquinho e A professora Maluquinha escritos pelo
Ziraldo. (...) Esses personagens me marcaram. Eu li muitos livros do Ziraldo
todos bem legais e instigantes, uns incentivando a não fazer bullying etc”.
Aluna 8
“Gostei do Peter Pan e da Sininho, pois na terra do nunca tudo poderia se
tornar real”.
Aluno 9
“(...)Comecei a ler gibi quando a sala toda ia pegar um livro na biblioteca”.
Aluno 10
“Adorava as histórias na creche”
Aluno 11”O
que me marcou muito foi o livro do Monteiro Lobato Caçadas de Pedrinho. (...) Foi o melhor livro que já li”
Aluno 12
“Adorava os Três Porquinhos (...)”.
Aluno 13
“(...) Adorava os livros dos autores Monteiro Lobato, Ziraldo e Maurício de
Souza e os seus personagens: o Menino Maluquinho, Pedrinho e Cebolinha”.
Aluno 14
“Branca de Neve e a Turma da Mônica (...)”.
Aluno 15 “A
minha professora da creche me contou a história da Chapeuzinho Vermelho, (...)
pra mim foi uma história literária”.
Aluno 16, 17
e 18 (...)
Portanto a que conclusões poderemos
chegar após ouvir as falas dos alunos e alunas?
1 Cito Barthes quando ele afirma que a
literatura não passa de lembrança de infância e é algo a ser ensinado. Se
pensar nesse universo de alunos a escola – de certo modo – cumpre esse papel.
Mas o ensino ou a ênfase à leitura/literatura não foi uma constante com os
professores que trabalharam com a turma ao longo dos anos. Houve falhas: falha
na formação do profissional, métodos tradicionais de ensino, ênfase ao ensino
da língua de forma descontextualizada, não perceber o ensino da
leitura/literatura como importante, não ser um leitor e, por fim, não encantar.
E o encantamento é o primeiro passo para “fisgar” o futuro leitor. Como alguns
professores encantaram esses alunos: contaram boas histórias, levaram às
crianças à biblioteca, incentivaram a leitura, liam com e para elas, a leitura
era uma atividade amorosa. O prazer, a fruição que a leitura/literatura produz
em seu leitor, isso é que importa.
2 Imbricada com a primeira constatação
está a segunda constatação, cito
Abramovich “É importante para a formação
de qualquer criança ouvir muitas histórias... Escutá-las é o início da
aprendizagem para ser um bom leitor, e ser leitor é ter caminho absolutamente
infinito de descoberta e de compreensão do mundo.” (ABRAMOVICH, 1993, p. 16).
3 O pouco espaço dedicado à
leitura/literatura. Esse não-lugar da literatura. Essa ausência acondicionada em uma não presença do
ensino da literatura nas diversas esferas educacionais. Como afirma Coutinho:
“Essa ligação da
literatura com o ensino, quer secundário, quer universitário, é assunto que se
tem muito escrito e há países nos quais certo excesso de subordinação das
letras à vida universitária (...) No Brasil, entretanto, o mal reside antes na
falta de ensino”. (2004: 212-213)
A
afirmação de Coutinho é verdadeira quanto ao ensino de literatura. Na Educação
Infantil ela é considerada uma atividade “menor”, no Ensino Fundamental I e II
o texto literário, na maioria das vezes, é utilizado como pré-texto para
exercícios gramaticais. No Ensino Médio as aulas são divididas em Literatura,
Gramática e Redação – normalmente com professores diferentes. Nas universidades
a literatura está restrita aos cursos de Letras e a algumas grades curriculares
nos cursos de Pedagogia e a ênfase ainda pode ser dada ao ensino da gramática.
Pois segundo Rosângela Hammes a escola está perdendo seu papel de ensinar a
ler. Parte-se do princípio que após a fase da decodificação o letramento é –
quase – um processo automático.
4. Como então se configura o
leitor-voraz? É aquele indivíduo que tem conhecimento de um idioma é tem a
capacidade de movimentar-se dentro desse sistema linguístico. De acordo com María Isabel de Gregório de Mac María
Cristina Rébola de WELTI (1995) na publicação “La organización textual: los
conectores. Su aplicación en el aula” (Buenos Aires): “Saber uma
língua é ter conhecimento completo de como dizer, a quem dizer, quando e onde
dizer” (Mac
& Welti, 1995:16). É ter consciência sobre o que fala e o que lê. Essa
habilidade – esse traquejo – esse manejo – com a linguagem acontece com o
leitor profícuo. Aquele que lê muito, que devora livros. Alguns dos alunos e
alunas, apesar de seus discursos se restringirem a determinados personagens,
leram em torno de 20 (até mais) livros durante o ano letivo. Devoraram Monteiro
Lobato, Agatha Christie, Coleção Vagalume, O Pequeno Príncipe, Júlio Verne,
Ziraldo, Diário de um banana, As aventuras de PI, Harry Potter, A saga
Crepúsculo, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Cecília Meireles, e muitos outros e
outras.
Mas por
que alguns se tornaram leitores vorazes?
Simples,
em algum momento de sua trajetória de leitores, a família ou uma professora
adicionou um ingrediente mágico e transformador – O AFETO. Mas não é o afeto
interpessoal. É o afeto pelo livro, pela leitura, é amor por ensinar. Esse é o
afeto, aquela professora com brilho nos olhos – a fada das letras. Que conta.
Que encanta. Aguça a imaginação. Alimenta a alma. Torna a leitura pura fruição.
É o que acontece na Terra-do-nunca ou em Alice no país das Maravilhas o leitor
fica preso nesse mundo, e o professor depois de jogar seu encanto sente-se tal
qual o Pequeno Príncipe com relação à rosa ser o eterno responsável por quem
ele cativou – o leitor-voraz. E cabe aqui – pra mim e para muitos de vocês - a
mesma resposta dada por Todorov à pergunta: Porque amo a literatura? Por que
ela me ajuda a viver. E então? Trouxestes a chave?
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