16 de maio de 2014

Artigo: Simpsons e a religião (Autor: Francesco Occhetta)



Os Simpsons e a religião
Em 17 de dezembro de 1989 saiu ao ar pela primeira vez nos Estados Unidos ou programa de desenhos animados Os Simpsons, destinado a tornar-se em poucos anos no mais famoso sitcom (comédia de situação) do mundo. A série foi criada pelo engenhoso desenhista americano Matt Groening quando, minutos antes de apresentar-se em uma importante reunião com um produtor televisivo, inventou novos personagens de mandíbulas quadradas, olhos similares a bolas de golfe e pele amarela. Nenhum produtor teria apostado que essas novas caricaturas chegariam a estar entre os personagens mais famosos da história. No entanto, em pouco tempo os americanos se reconheceram nas histórias da família Simpson e da sociedade da pequena cidade de Springfield.
No início dos anos noventa a opinião pública mundial se dividiu em duas. Sobretudo nos EUA muitas associações de pais consideraram que os Simpsons não constituíam um bom modelo educativo. Mais ainda, George Bush pai, presidente nessa época, criticou a série: “ Vamos fortalecer a família americana para torná-la mais parecida com os Waltons e menos com Os Simpsons . ” Muitas escolas proibiram seus estudantes de usar camisetas dos Simpsons. No entanto, a renda gerada em torno da série televisiva, após quatorze meses de produção, chegou a mais de dois bilhões de dólares.

OS PERSONAGENS

Os Simpsons é uma famosa sitcom que narra a vida de uma família americana num típico município, Springfield, cujo nome é compartilhado pelo menos com trinta pequenas cidades desse país. Homer é o chefe da família, trabalha como inspetor de segurança numa central nuclear, mas, devido a sua lentidão e pouco gosto pelo trabalho, parece estar estancado eternamente nesse posto. Seu único desejo é voltar para casa ,o quanto antes, depois de uma jornada de trabalho, para instalar-se diante do televisor e comer pipoca, sanduíches e tomar cerveja. É homem sem elegância, castigado também por seu aspecto físico, pouco capaz de dialogar, mas é uma pessoa generosa.

Marge é a dona de casa e voz moral da família. Ensina seus filhos (sem muito sucesso) a fazer o bem e a combater o mal, e está ancorada nas tradições. De fato, personifica também a mãe superprotetora e invasiva com um estranho passatempo: modifica continuamente seu penteado azul, muito crespo e muito alto, utiliza-o de vez em quando como caixa-forte, pequeno armário ou bolsa.

Os Simpsons têm três filhos: o primogênito Bart é a personagem mais popular. Tem dez anos e se orgulha de ser o último do curso. Na realidade, fez isso de propósito: assim pode ser reconhecido e legitimado em seu papel por uma sociedade que não considera ninguém. É astuto e contra qualquer regra, ama o skate e a televisão, e seu passatempo preferido é fazer brincadeiras de mau gosto com o cantineiro Moe Szyslak e com o diretor do colégio Seymour Skinner.

Sua irmã Lisa tem oito anos e é o cérebro do lar. É vegetariana e ecologista, mas também inconformista, progressista e ambiciosa. Tem grandes sonhos (gostaria de chegar a ser presidente) e crê estar entre os melhores músicos do mundo.

Por último, Maggie, que tem um ano, não fala, usa uma chupeta estereofônica e quando trata de caminhar sempre cai. Além disso, os Simpsons têm um gato, Bola de Neve II, e um cachorro, Santa Claus.

Mas a família tem outro membro, o avô Abraham, que é excluído e desacreditado pelo resto. Ele encarna o abandono dos anciãos na sociedade ocidental e da memória histórica da família, a sabedoria e a experiência de vida. Como sucede freqüentemente com os idosos, o avô, que serviu durante a segunda guerra mundial, também vive de recordações e de episódios. No entanto, os Simpsons não gostam de recordar o próprio passado e os fracassos vividos; querem viver o presente procurando conquistar o futuro. Por isto o avô é enviado sem nenhum escrúpulo nem sentimento ao “exílio”, ao asilo de anciãos de Springfield.

OS CONTEÚDOS

Os cerca de quatrocentos quarenta episódios da série, que exigem dos produtores seis a nove meses de trabalho para cada um, baseiam-se tanto numa comicidade aparentemente surrealista como em tons sarcásticos sobre os tabus da sociedade americana, com muita sátira sobre a família e a vida cotidiana. Portanto, Springfield é considerado o ícone do vilarejo global do Ocidente onde, por um lado, tudo é deformado e agigantado e, por outro, mostra que o que se conta é real e não se limita somente à realidade dos Estados Unidos, mas abrange outras partes do mundo, pelo menos as mais industrializadas.

É verdade que alguns detalhes e variações temáticas podem não ser compreendidos pelos que não vivem nessa nação. De fato, apela-se a assuntos de crônica jornalística, como Watergate ou a guerra do Iraque, comentam-se problemas políticos abertos, não faltam aparições de personagens famosos, como os Kennedy, a mulher do presidente Barack Obama, Michelle, ou as referências a filmes de atualidade, canções ou transmissões televisivas populares.

Bart, Lisa e Maggie são filhos de uma geração cheia de violência e de medos, que rejeita os modos tradicionais de educação. Seus dias de colégio são uma crítica implacável ao sistema escolar americano: violência na sala de aula, falta de autoridade dos professores, formas de ensinar superadas, cortes no orçamento das escolas e quebra do pacto de confiança que unia os professores e as famílias para educarem juntos.

A política também está presente. Tratam temas como, por exemplo, o meio ambiente, o desarmamento, a saúde, a promoção dos direitos civis, muito queridos pelo Partido Democrata americano (por isso a administração Bush sempre temeu as críticas dos Simpsons). Denunciam os abusos de poder do Governo e das grandes indústrias.

A vida da sociedade aparece despojada de esperança e os capítulos mostram-na de um modo implacável: políticos corruptos, meios de comunicação subordinados ao poder e com informação parcial, autoridades religiosas distantes da vida dos fiéis. Inclusive a polícia local, especialmente o chefe Gorgory, é ineficiente e não garante a ordem nem a segurança. No filme de Os Simpsons, por causa do tema do lago contaminado, o político que procura salvar a cidade com meios muito custosos para o Governo, exclama: “É verdade que sou o proprietário da empresa [e dos meios utilizados], mas isso é um detalhe mínimo”.

.Mas a sátira do programa leva a perguntar-se também em como viver o papel de dona de casa, de mãe e de esposa. Se for feito ao modo de Marge, corre-se o risco de dar sistematicamente aos problemas de hoje respostas de ontem, baseadas exclusivamente na tradição. A própria relação matrimonial entre Homer e Marge é sinal de um mal-estar tácito, nunca esclarecido, talvez uma concessão perpétua, fruto da incapacidade de dialogar e de reconciliar-se explicitamente. Nos episódios, por trás da sátira e das brincadeiras que fazem rir, abordam temas antropológicos relacionados com o sentido e a qualidade da vida.

A RELIGIÃO

Os Simpsons está entre os poucos programas de televisão onde a fé cristã, a religião e a pergunta por Deus são temas recorrentes. A família recita suas orações antes de comer e, a seu modo, acredita em uma outra vida. A relação do chefe de família com Deus é adolescente; antes de assistir ao serviço religioso repete: “ Mas, Marge, e se escolhemos a religião equivocada? Toda semana nós deixamos Deus ainda mais bravo”.

O reverendo Lovejoy, pastor da comunidade protestante de Springfield, é o “bode expiatório” desta operação. Muitos capítulos ridicularizam seus sermões, mostram que Bart dorme e que Homer escuta jogos de futebol americano. Sua atitude é de desilusão, parece ter perdido a alegria que tinha quando chegou pela primeira vez ao lugar, com seu violão e sua Bíblia. Fala com slogans e enche seu templo de avisos para lançar o tema da semana: “Domingo, o milagre do arrependimento”; “Proibido estacionar na sinagoga”; “Ao arcebispo só restam vinte dólares”. Parece que o reverendo Lovejoy se preocupa mais com o reconhecimento social do que com a vida espiritual de seus fiéis.

Além disso, suas respostas são com freqüência apressadas e superficiais. No capítulo sobre “O segredo de um casal feliz”, quando Marge lhe pede conselho para resolver seus problemas no casamento, Lovejoy lhe responde: “Peça o divórcio!”. É claro que basta uma resposta como essa para gerar desconfiança e confusão sobre a Igreja em milhões de telespectadores. Mas frases similares são premeditadas e queridas pelos produtores.

O reverendo Lovejoy tem, no entanto, uma capacidade de autocrítica que o leva a reconhecer seus erros e a pedir perdão. Não falta nele uma sutil ironia. Quando se inteira de que uma seita está fazendo proselitismo com fins de lucro em seu território, no outro domingo avisa: “Esta chamada nova religião não é outra coisa que uma maré de rituais bizarros e salmodias escolhidas para tirar dinheiro dos ingênuos. Vamos rezar 40 vezes para o Senhor. Mas, primeiro, passaremos a bandeja da coleta”.

O tema religioso também é desenvolvido através da figura de Nedward (Ned) Flanders, o cristão evangélico, vizinho da casa dos Simpsons. É um convertido muito gentil mas integrista, sempre pronto a ajudar e a oferecer uma boa palavra. Está obsessionado pelo temor a violar as leis de Deus, que segue ao pé da letra e as sente como um dever e não como uma ajuda para viver uma vida nova. Em vez de considerar o tempo como um dom que Deus nos dá para vivê-lo através da oração e do serviço ao próximo, Ned vive seu dia a dia como o espaço da conquista da salvação que se obtém cumprindo as normas e os preceitos bíblicos. Sua excêntrica maneira de ser aparece em muitas ocasiões, como na eleição da patente de seu auto JHS 143 (a passagem do Evangelho de João 1, 43 no qual Jesus diz a Felipe: ‘Segue-me’). Os Simpsons o maltratam e o consideram “toxicamente religioso”, mas Ned está sempre disposto a arriscar sua vida para salvar a deles, como no filme, quando Homer contamina o lago e os habitantes de Springfield querem matá-lo. Por isso também, quando Flanders ia ser expulso da comunidade, Homer o defende diante da assembléia: “Este homem pôs todas as faces que dispunha. Se cada um de nós fosse como Ned, não haveria necessidade do Paraíso: já estaríamos nele”.

 Os autores têm uma concepção apocalíptica e deslocam a atenção para o fim dos tempos. Não questionam o sentido deste nem seu fim. Não questionam a maneira em que vivemos como irmãos. Os Simpsons vão à igreja para aplacar um medo do futuro que são incapazes de governar. Deus se trnasforma no último refúgio: “Normalmente não sou um homem religioso, mas se você estiver lá em cima, salve-me… Superman!”. Em alguns capítulos, Deus aparece como um homem idoso de barba branca e abundante, mas sem rosto; apresenta-se como um mistério a ser descoberto.

Em 2007 o programa dedicou um capítulo à Igreja católica, intitulado “Pai, Filho e espírito prático”. Quando expulsam Bart da escola, seus pais o mandam como castigo à escola católica de São Jerônimo, onde “o ensino é duro e não permite brincadeiras .” Enquanto a professora é uma freira irlandesa intransigente, o capelão, padre John, conquista Bart. Conta-lhe sua conversão, diz-lhe que quando era pequeno se parecia a ele, depois lhe dá um livro sobre a vida de santos para ler. Basta um encontro autêntico deste tipo para mudar a vida de Bart, que exclama “o catolicismo é mítico”. Em casa os pais se preocupam, e Homer enfrenta o capelão: “Estou farto de que ensinem meu filho valores cheios de valores!”. Mas o pai também acaba sendo conquistado pelo jovem sacerdote, a ponto de querer converter-se em católico. Se confiesa y se siente libre. Ele se confessa e se sente livre. Enquanto isso, Marge, o reverendo Lovejoy e Ned declaram a guerra aos católicos: “Não posso entrar na Igreja Católica, exclama Marge, uma fé diferente quer dizer uma vida depois da morte diferente, além disso, quero que minha família se mantenha unida”. O desencontro se torna pesado. A posição de Lisa é de abertura: “Todos deveriam poder escolher a própria fé”. Mas o grupo que representa a instituição e o poder da comunidade protestante aumenta a tensão entre as entidades. Sendo assim, é o pequeno Bart que dá uma lição de compreensão para os mais velhos : “Tudo é cristandade. As pequenas estúpidas diferenças não são nada em relação às grandes analogias”.

Depois de vinte e duas temporadas do desenho animado mais transmitido na história da televisão, resta uma pergunta para muitos pais de família : “ Será que deixo meus filhos assistir a Os Simpsons? ” A preocupação está baseada no temor de que uma linguagem cruel, com freqüência vulgar, e a violência de certos episódios ou o extremo a que chegam certos roteiros influenciem o comportamento de seus filhos. Mas o realismo dos textos e dos capítulos poderia ser uma ocasião para vê-los juntos, e usar os argumentos para dialogar sobre a vida familiar, escolar, de casal, social e política.

Nas histórias dos Simpsons não há nunca um final feliz, mas também não há só cinismo e sarcasmo, como alguns autores afirmam. Relata-se a realidade e a possibilidade de encontrar um sentido nessa cotidiano que com freqüência achata e humilha as pessoas. Desta maneira, as gerações de telespectadores são educadas para não se iludir. Em cada personagem aparece otimismo e pessimismo, a consciência de ter de viver um papel social e o sonho de querer ser livres. Em seus rostos e em suas palavras estão impressos a confusão do homem contemporâneo e os condicionamentos aos quais são submetidos. Por este motivo os jovens telespectadores já não são educados para um final feliz, senão que devem confrontar-se com uma realidade dura e as vezes paradoxal, onde a família parece ser o único refúgio. Fora da própria casa, em compensação, rege a lei da selva: “Que vença o melhor”.

O lugar da salvação e da unidade da família-instituição, efetivamente, “está no centro de toda a trama narrativa: ridicularizada continuamente, é óbvio, mas também reconhecida como o único (e o último) autêntico ponto de referência em chave social e em boas contas o mais sólido, com um recíproco e bem consolidado apego entre cada um de seus membros” (1).

Há um último aspecto sobre o qual refletir. Os Simpsons permanecem “eternamente jovens”, não mudam, permanecem iguais a si mesmos. A dimensão do tempo que passa, as opções para realizar na história, o uso das novas tecnologias, as dimensões da doença e da morte quase nunca são tratados como temas. Em compensação, se quisermos falar da realidade e da humanidade que o homem compartilha, esses temas deveriam ser encarados sem medo pelos autores.

É verdade que os episódios enfatizam mais a religião como instituição que a vida de fé entendida como um seguimento de Cristo feito através de oração e da ajuda ao próximo. Nos Simpsons também estão latentes alguns elementos presentes no Evangelho, como quando Bart afirma: “Para poder me salvar, devo salvar os outros”. Bastaria que os milhões de jovens que acompanham o seriado interiorizassem este ensinamento para esperar um mundo melhor.
 
Autor: Francesco Occhetta
Fonte: Mirada Global

Fonte:http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_canal=34&cod_noticia=17128 

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