15 de maio de 2012

Texto: Metáfora e eufemismos (texto de Deonísio da Silveira)


ESCOLA DE EDUCAÇÃO BÁSICA JOSÉ BOITEUX
Rua Marechal Câmara, 182, Estreito, Florianópolis, SC.
Professora: Rosane Hart             Disciplina: Português


Metáforas e eufemismos

"‘Dá uma preguiça desgramada’, disse o presidente Lula sobre o ato de ler, ao inaugurar a Bienal do Livro, em São Paulo, semana passada. Os jornais repercutiram a declaração no dia seguinte, dedicado ao índio. Ler seria, então, entretenimento de silvícola, mais conhecido como programa de índio? Não, o presidente usou outra de suas célebres metáforas e comparou a leitura a indispensáveis caminhadas de adultos sedentários.
Ano passado, no primeiro semestre, havia excessiva indulgência com as gafes do presidente, motivada pela inédita chegada de um ex-operário à Presidência da República. Naqueles primeiros dias, nem isso se poderia dizer, ex-operário, sem que olhares à sorrelfa, telefonemas repreensivos e outras duras mensagens corretivas tentassem reeducar a quem ousasse vituperar qualquer declaração de Lula. Era vigilância exagerada sobre quem tem o direito e o dever de escrever com liberdade.
O dever da liberdade? Isto mesmo! Quem escreve, tem, não apenas o direito à liberdade, mas também o dever de exercê-la em seu ofício. O cineasta Luís Buñuel tratou da questão com ironia num filme desconcertante, intitulado justamente O fantasma da liberdade.
A chegada de Lula à Presidência da República deixou tão desarrumados os modos clássicos de criticar, que somente os mais preparados garantiram a sobrevivência do requisito básico de quem escreve: a liberdade.
Somos, porém, um povo ciclotímico, que alterna generosidade e clemência, maldade e insensatez. Às vezes, é proibido elogiar. Outras vezes, é proibido reprovar. Ora, a crítica isenta pressupõe endossos e recusas. Os recentes eventos da Rocinha, a execução de prisioneiros em Rondônia e a chacina de garimpeiros na Amazônia oferecem contrapontos problemáticos aos defensores de nossa proclamada cordialidade.
Chico Buarque e Ruy Guerra resumiram a alma brasileira nestes versos de Fado tropical: ‘Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar,/ Meu coração fecha aos olhos e sinceramente chora...’ (...) ‘E se a sentença se anuncia bruta,/ Mais que depressa a mão cega executa,/ Pois que senão o coração perdoa’.
Este contraditório espírito nacional baixou sobre nossa imprensa, antes compassiva com as gafes presidenciais e agora rigorosa com o presidente Lula. E, no caso, ocupando-se de seu português, alguns jornalistas tacharam como gafe a expressão que ele utilizou ao comparar o ato de ler com o de fazer ginástica.
Outra vez perderam a medida. Lula não cometeu gafe. Ao contrário, utilizou um eufemismo para evitar uma palavra mais pesada. O eufemismo consiste em suavizar a dureza de palavra ou expressão. Foi o que o presidente fez. Em vez de dizer que ‘dá uma preguiça desgraçada de ler’, disse que ‘dá uma preguiça desgramada’.
Invocações a eufemismos ocorrem em outras esferas do poder, inclusive no Legislativo, onde ele um dia enxergou, sem eufemismo nenhum, ‘trezentos picaretas’. Ali, as ilustres personalidades utilizam abundantes eufemismos. Com efeito, não mentem; faltam com a verdade. Não caluniam; exageram nas acusações. Não corrompem; pedem favores a parentes, amigos e conhecidos. Não perseguem subordinados; apenas extrapolam ou exorbitam de suas funções. Não são tampouco arapongas. Ao bisbilhotar a vida alheia, atendem ao interesse nacional.
O uso de metáforas e eufemismos não substitui o conhecimento da língua. Em vez de ‘ele morreu’, diz-se que ‘esticou as canelas’. Mas depende do contexto e dos envolvidos. De um político não se diz isso, nem que ‘abotoou o paletó’. Recomenda-se: ‘ele deixou a vida para entrar na História’.
Atos e falas do presidente Lula, muito repetitivo em suas metáforas, indicam que ele ouve muito, mas lê pouco."

Deonísio da Silva (publicado em 27/04/2004 na edição 274)

Fonte: OBSERVATÓRIO DE IMPRENSA. Metáforas e eufemismos. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/deonisio_da_silva__24715>. Acesso em: 15 MAIO 2012.

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