15 de maio de 2012

"A morta" de Vítor Meirelles





PERTURBAÇÕES DE UM RETRATO. 
"A MORTA", DE VICTOR MEIRELLES
Rosângela Miranda Cherem 






Armadilhas de um retrato. 

Primeiro a surpresa de quem se depara com um enigmático perfil debruçado sobre uma almofada. Em seguida as divagações sobre um rosto que não é nem jovem e nem velho, nem masculino e nem feminino, adornado por uma cabeleira rala que alcança o ombro. Olhando o alvo colarinho masculino pode-se suspeitar do retrato em repouso de um dandi excêntrico, quem sabe os delírios de um extravagante boêmio de olhos encovados pela existência insone e desregrada, alguém mal adormecido ou sonâmbulo, talvez ferido num duelo ou gravemente enfermo. Mas a palidez lunar daquela face logo faz lembrar uma austera beata e, ao observar a única e discreta argola na orelha direita, não é impossível considerar a representação de uma infeliz solteirona. Talvez estejam sendo referidas as alucinações de uma prostituta após um aborto mal sucedido ou as desastrosas complicações de uma parturiente. Conjecturando sobre a compleição magra do corpo, seria admissível deslindar o desfecho de uma moribunda tísica ou sifilítica.

Mas um detalhe definitivo vindo de fora da tela impõe fim aos devaneios produzidos por aquele óleo sobre tela em formato ovalado, medindo 50,5 por 61,2 cm e assinado discretamente na altura mediana do lado direito. Trata-se de A Morta, pertencente ao acervo do Museu Víctor Meirelles em Florianópolis. A partir daí o olhar se reenquadra, ajustando-se ao escrito e mapeando a lateral direita do rosto, num espaço entre a testa ampliada, talvez pela queda capilar, e o queixo alongado, talvez pela abertura involuntária da boca. Assim surge o que parece ser um circuito vital interrompido: orifícios inoperantes por onde os cheiros e sons não são mais sentidos, tanto como o visto não pode mais ser dito. Curioso constatar que o exato meio da tela está localizado entre os lábios pálidos e o nariz afinado, no espaço vazio do buço, e que a narina dilatada parece apenas aumentar a constatação de que algo não pode mais ser alcançado pela consciência diurna. Sobre essa aparência, a sobrancelha, os cabelos e a vestimenta apenas assinalam o fundo diluído e ausente de perspectiva, através do qual cabe imaginar sem maiores esforços, o outro lado do rosto, como se a superfície carnal estivesse ao alcance de quem melhor se reposicionasse para enxergá-la por inteiro. Agora já não se trata apenas de uma cabeça vista lateralmente, mas de um corpo depositado sobre um leito, cujo travesseiro, fosco e sobriamente adornado, insiste em lembrar uma ausência de aconchego, cuja fria extensão quase se pode alcançar. Aos poucos a experiência visual acaba sendo assimilada pelo conteúdo da legenda. É quando finalmente os sinais que compõem o conjunto da tela se ressignificam pela textura porosa e mortiça, a temperatura cadavérica e as cores tumulares e ausentes de brilho. Então a surpresa dá lugar à constatação: é uma cena fúnebre que se apresenta naquele busto deitado, disposto de modo que o inerte, personificando a morte, está à altura de quem o observa.

Tal compreensão remete ao historiador de arte Louis Marin, particularmente no que se refere ao olhar que, atravessando a película da tela, desliza pela camada onde estão detidos os arrependimentos e esplendores, as rasuras e retoques, as espessuras e transparências até encontrar as dobras paradoxais da imagem. Operação em que estão contidos os jogos de reciprocidade entre presença–ausência, proximidade–distância, aparecimento-desaparecimento: “como as pálpebras fechadas num rosto adormecido, os lábios de uma boca entreaberta por um sopro sem voz (...)essa superfície pintada sela um misterioso segredo, a cripta onde ele será enterrado,enquanto o segredo tece apenas suas insinuações por essa superfície exposta ao olhar.

Em clave semelhante, lembrando que a visão é invisível, o filósofo-escritor Maurice Blanchot assinala a arte como o lugar onde se instala o enigma do fim singular, duplicado na imagem não apenas como objeto que introduz na aparição do outro a indagação de sua própria morte, mas também como desdobramento que permite reconhecer na figuração do vazio e da superfície o que resta daquilo que não se pode compreender. Eis o espaço de devaneio, espécie particular de intervalo para onde são arremetidos tanto o pintor como o espectador, pura exterioridade e ausência lançadas sempre ao mais longínquo reino, onde as coisas e acontecimentos jamais se relacionam nem se equivalem. Morada da ferida produzida pela ruptura insolúvel e irreparável da completude, presença fantásmica de algo que faz falta e retorna, não como a primeira, mas como a última vista. Experiência semelhante a de quem olha na praia para um navio, desejando reter naquele instante o objeto amado que se distancia e parte com ele. Paradoxo da familiaridade na distância imemorial e extrema, mas também hiância interminável de quem pressente uma incomunicabilidade e compreende como Jean Genet que “sendo o que sou e sem reservas, minha solidão conhece a sua”.
(...)
De volta ao retrato de A Morta, impossível ignorar a presença das frestas ou fendas, abismo entreaberto num seu rosto pelo olho que, não mais podendo ver, ainda continua em posição de quem permanece vendo. Igualmente impossível ignorar sua boca lembrando a palavra que se apaga com o último sopro de respiração, tragada pelo instante infinito em que ocorre a derradeira ultrapassagem, devorada com o último ruído e expelida com o último sopro. Buracos reconhecidos não apenas como passagem entre interior-exterior, mas por onde se é tentado a expiar o mais estranho e misterioso instante, aquele que remete à experiência única e intransferível e recorda aquilo que não se pode ver duas vezes, lembrando o mais impenetrável dos lugares, espaço sem tempo para onde tudo conflui. Olho e boca entreabertos mas vistos de lado, objetos visuais inacessíveis, orifícios que existem mas que não podem ser encarados de frente, enigma sobre o inapreensível, que registra a presença do infinitamente ausente e autoriza um olhar pelo desvio, guardando os mistérios daquilo que um dia tudo tragará. Ponto inaproximável entre o pensamento e o apagamento, entre o orgânico e o não mais, ausência e vazio que não se deixam penetrar, portal inelutável do que não se pode confrontar.


Fonte: UNISANTOS. Revista Patrimônio. Disponível em: <http://www.unisantos.br/pos/revistapatrimonio/iconografia.php?cod=6>. Acesso em: 15 maio 2012.




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