9 de março de 2013

Entrevista com Evanildo Bechara

Evanildo Bechara

POSTADO EM 01/02/2013
"Membro da Academia Brasileira de Letras desde o ano 2000, Evanildo Bechara é hoje um dos mais respeitados estudiosos da gramática e da Língua Portuguesa. Autor dos livros Moderna Gramática Portuguesa (Nova Fronteira, 2009), Gramática Escolar da Língua Portuguesa (Nova Fronteira, 2010) e Lições de Português pela Análise Sintática (Nova Fronteira, 2011), tornou-se referência no ensino e aprendizagem de nossa língua materna. Detentor do conhecimento preciso sobre o novo acordo ortográfico, elaborado para uniformizar a grafia das palavras dos países que têm o português como língua oficial, o professor nos conta a sua trajetória pessoal, relembrando como surgiu o interesse pela gramática e suas possibilidades de estudo, reforçando o papel desempenhado pelo aprendizado da língua, o respeito às variantes regionais e de adequação a cada circunstância da fala. Acompanhe os principais trechos.
O que o fez se interessar em ser gramático?
Foi um acidente de percurso muito curioso. Sou pernambucano, nasci no Recife em 1928, estou com 84 anos, meu pai morreu cedo e por isso tive de mudar para casa de um tio-avô para prosseguir os estudos. Cheguei ao Rio de Janeiro no ano de 1940 e o meu tio, que morava no Méier, matriculou-me em um colégio militar. Quando estava no segundo ano do ginásio, entrou para a turma um uruguaio chamado Raul, um garoto mais velho e com uma cultura superior à da nossa classe. Esse Raul tirava as maiores notas em todas as disciplinas. Então a turma se reuniu, pois estávamos impressionados. Não é possível que um estrangeiro tire maior nota do que nós em História, Geografia do Brasil e Língua Portuguesa. Tomamos uma atitude e metemos a cara nos estudos para ao menos tirar as mesmas notas que ele. O processo começou assim. Outro fator de estímulo foi a organização do meu curso de Língua Portuguesa, que era composto por dois livros: um chamado Gramática Expositiva, de autoria de Eduardo Carlos Pereira (1855-1922), e uma antologia nacional de Fausto Barreto (1852-1908). Com esses títulos fazíamos todo o curso, o que permitia conhecermos bem os livros adotados. Eu não possuía muito conhecimento desse fenômeno raro que se chama língua materna, porque não é possível conhecê-la em toda a sua extensão, pois é muito rica e temos nossas limitações. Digo isso porque há variedades linguísticas. Se formos ao Recife, encontraremos certas particularidades, diferentes das do estado do Rio de Janeiro, por exemplo. E quando lemos textos literários encontramos uma profusão de construções sintáticas e vocabulários que aprendemos aos poucos e com os quais enriquecemos a linguagem.
O senhor chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1940, antes da concretude da presença da televisão no país. Podemos relacionar esse veículo à uniformização da Língua Portuguesa?
A televisão trouxe fatores importantes. Certa unificação, porque todos que assistem e ouvem TV gostam de falar do modo que está sendo representado e isso sugere um movimento de uniformidade linguística. Também surge o movimento da imitação e da simplificação da linguagem, porque a pessoa procura dizer as coisas do modo que a TV apresenta. Nós temos forte influência social desse veículo de comunicação, por isso mesmo a TV precisa de um maior cuidado dos seus locutores. Antigamente, quando um locutor se candidatava para trabalhar no rádio, passava por um curso para pronunciar corretamente as palavras. Preocupação que parece não existir hoje.
O Brasil é extenso e falamos a mesma língua. como podemos entender esse fenômeno em termos de gramática? A língua brasileira falada no sul é a mesma falada no norte do país?
Sim, é. Claro que temos os regionalismos, os usos específicos de cada região, mas existe na língua falada no Brasil uma unidade essencial, que na verdade é uma variedade que não prejudica a comunicação entre os moradores de diferentes regiões. E, hoje, com os meios de comunicação cada vez mais difundidos, é mais difícil a fragmentação linguística. A facilidade de intercomunicação vai diminuindo a criação de variedades linguísticas, principalmente variedades resultantes dos dialetos. Esse fenômeno é positivo para a unidade da língua, mas não é uma camisa de força. É possível que apareça um escritor como Guimarães Rosa etorça a língua para atender as suas necessidades expressivas. Ao mesmo tempo em que isso é uma unidade que facilita a comunicação, não representa uma camisa de força para sairmos da unidade relativa e atingirmos um estilo original.
Comparando a vertente linguística que observamos na imprensa diária, quais as principais diferenças das décadas anteriores para a atualidade?
O que houve foi uma unificação linguística necessária para a intercomunicação. Infelizmente, hoje temos menos leitores de jornal, além de nos faltar os profissionais preocupados com a correção de linguagem, porque o jornalista de antigamente era jornalista no dia a dia, mas, até 1960,era difícil encontrar um que não tivesse publicado livros de qualquer tema. É importante enxergar o ato de ler como um grande exercício para a educação linguística.
Como o senhor vê o ensino da língua nas escolas?
Sou de uma época em que se ensinava Língua Portuguesa em todas suas manifestações, tanto na aula de gramática quanto na prática da leitura em voz alta. Hoje você pede a um rapaz que tenha concluído os dois níveis da escola, o fundamental e o médio, que leia um texto, ele não sabe ler em voz alta ou dar a entonação necessária. As salas de aula são formadas por um grande número de alunos, que por vezes são mal educados, postura que prejudica o trabalho tranquilo e fundamental do professor. Por outro lado, o salário de antigamente do docente não era tão melhor do queo de hoje, mas o professor tinha uma projeção social, o que não acontece mais.
Como devemos entender o conceito de erro aplicado ao ensino da língua? Começando pela diferença entre o linguista e o professor, dois profissionais fundamentais nesseprocesso. A linguística é ensinada na universidade e esse profissional quer dar a última palavra e criticar o trabalho do professor na sala de aula, mas na verdade os dois têm objetos e objetivos diferentes, porque o linguista trabalha com todas as variedades, não está preocupado com o certo ou errado e sim em entender como a língua funciona no seu habitat. Jáo professor é aquele que recebe o aluno com o material linguístico aprendido em casa e vai aperfeiçoá-lo para quepossa atingir uma posição na sociedade. Educar significa “conduzir para fora”, “educar para fora”. Nesse sentido, o linguista que acha que o professor não deve interferir na língua que o aluno traz de casa está dizendo uma meia verdade, porque essa bagagem pessoal é suficiente para sua intercomunicação, mas não pode ser considerada a língua que a sociedade vai exigir de um jovem no mercado de trabalho, por exemplo. Em resumo, antigamente, para ser professor, não havia faculdade específica. Era um médico que vinha das Ciências, da Química ou um padre que ministrava aula de línguas. Um homem que não tinha uma formação técnica suficiente, mas tinha cultura geral. Hoje, o professor que sai da universidade tem cultura específica linguística e aprende que todas as variedades linguísticas são válidas e estão corretas. Não é um problema de certo ou errado, mas sim de adequação e inadequação, de adaptação aos níveis linguísticos e às situações.
É válido pensar a opção pelo uso da gramática normativa como uma maneira de apartar socialmente quem desconhece a língua?
Essa é uma questão ideológica, porque realmente existe uma lacuna social que separa as pessoas,e a função da escola é diminuir a desigualdade; por isso, é imprescindível que ela seja de bom nível, a fim de evitar a política de cotas, que, em minha opinião, é o sinal da falência do ensino de qualidade. Infelizmente, a ideia aparentemente democrática de respeitar os outros significa a continuidade do não aprendizado.
O que o senhor pensa do uso de estrangeirismos na Língua Portuguesa?
É simples, basta verificar que uma língua se caracteriza pela sua gramática e não pelo léxico, que é apenas o resultado do contato de uma língua com as demais. O nosso contato com o francês era forte até o século 19 e o inglês veio a partir do século 20. O léxico é apenas o resultado do encontro da cultura dos povos, já a língua é a gramática, fonologia e sintaxe, porque, se uma língua se caracterizasse pelo léxico, o romeno não seria essencialmente românica, pois no se vocabulário só 10% é latim, o resto é de línguas balcânicas, onde a Romênia está inserida geograficamente. De modo que essas novidades enriquecem a língua, mas, ao mesmo tempo, enquanto perdurar esse fosso social entre a escola que pouco ensina e uma cultura que se aperfeiçoa no estrangeiro, existirá a dificuldade de aproximação da comunidade culta, que é a menor parcela da sociedade, com as demais.
Como o homem pode enriquecer a sua própria linguagem?
Conhecendo a língua e todos os recursos de que ela dispõe. Uma pessoa pode criar termos novos: por exemplo, o escândalo político do mensalão que estampou as páginas dos jornais. Essa palavranão é nova, era usada pela Receita Federal, quando você tinha uma dívida e queria pagar de uma vez só, chamavam de mensalão. No entanto, agora a relacionamos a falcatruas de políticos. É o que também acontece com as palavras cravadas pela história. Por mais que as pessoas briguem paratirar do léxico a palavra “judeu” em sentido pejorativo, ela encontra-se no imaginário popular.
Como podemos entender o nascimento das chamadas linguagens criativas?
A linguagem criativa surge com a chegada do novo. Podemos considerar a linguagem de um bebê como criativa, pois, quando nasce, comunica-se por meio de palavras reduplicativas, como papai e mamãe, que são usadas devido à presença da nova criança na família. Em suma, um elemento novo faz com que os adultos se adaptem ao uso dos diminutivos, então podemos entender que o elemento que faz explodir a linguagem criativa é o novo que aparece em todas as circunstâncias, seja na infância das crianças ou na música do estilo rap.
Abordando um tema polêmico, o senhor é contra ou a favor da política de inclusão das cotas?
Não sou contra por sentir que ela é necessária enquanto a escola, que representa a sociedade, for incapaz de oferecer uma educação de qualidade. Tal política nasceu em virtude da desigualdade social, que não deve ser promovida pela escola, mas sim contar com a sua ajuda para diminuir através da cultura. Não sou contrário à ideia das cotas, mas não cruzo os braços diante dela.

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