18 de março de 2014

O meu "ensaio sobre a cegueira"

Hoje as emoções se atravessaram, se misturaram, foram de um extremo ao outro. Tudo por conta da visão.
Não falo aqui daquela visão que nos permite ver todos os dias, mas daquela que nos permite ver possibilidades, conhecer pessoas. Ou até mesmo aquela visão que alguns dias nos permite ver uma paisagem turva, manchas que se movem e não nos permite ver com clareza.
Falo de literalmente sentir: qual a importância de podermos ver? Como reagiríamos se não a tivéssemos mais? Se perdêssemos a capacidade de ver?
A ideia agoniante de perder a visão surgiu há muito tempo quando li o livro "Ensaio sobre a cegueira" do escritor José Saramago.



Posteriormente assisti ao filme Filme que me fez refletir sobre o assunto.
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=3FOMTO8axVM

Contudo hoje foi diferente.

A primeira vez que ouvi falar da visão hoje, foi de minha professora que, emocionadíssima, dissera que estava aprendendo a ver, que fora míope desde a infância e que acostumara-se com a visão míope do mundo. Aos ver seus olhos marejados e as mãos trêmulas tentei imaginar o quão importante esse fato realmente era. De repente, quando adulto, perceber que o mundo não tinha exatamente as mesmas formas que estava acostumada a ver, as mesmas nuances de outrora. Antes da cirurgia sempre usara óculos, orgulhava-se de que para ler tirava os óculos - era seu charme. Em outras aulas, me lembro que tirava e punha os óculos com movimentos delicados como se fossem extensão de seu corpo - e eram. Hoje o movimento era outro. Tinha que por os óculos para ler. Mas eles a incomodavam, eram colocados e retirados de uma maneira brusca, como se castigados a cada ato. Uma serie de movimentos de tirar e por os acessórios, ora no momento certo, ora um reflexo do passado e, nesse caso, tinha que tirá-los. Fazia bruscamente. E assim passou a tarde. A luta com os óculos, mas a imensa felicidade de descobrir um mundo novo "um admirável mundo novo" (Aldoux Huxley) ou seria "um admirável mundo louco" (Ruth Rocha).
Terminada a aula, eu ainda com espectros da imagem do relato emocionado da professora sobre aprender a ver ou melhor Reaprender a ver um mundo que já era seu conhecido, desci as escadarias, rumo ao ponto de ônibus. No caminho, sentindo os pingos de chuva e agradecendo a um poder superior a graça de poder ver continuei andando. Observando o comportamento das pessoas e imaginando o que elas estariam vendo? Imediatamente lembrei-me do livro de Saramago, imaginei o caos se instalando naquele momento: vários ônibus lotados chegando à plataforma, alunos caminhando nervosos fugindo da chuva, muitos carros e todas as pessoas sem ver nada, completamente cegas. Nisso fui tragada pela multidão e obriguei-me a entrar no ônibus. Durante todo o trajeto, olhando os pingos de chuva agarrando-se ao vidro desesperadamente para não caírem, novamente agradeci o fato de poder ver. Relembrei quantas coisas belas já vi e o quanto tenho visto e assim, perdida em meus pensamentos cheguei ao meu destino - a plataforma do terminal central.
Ao chegar deparei-me com um grupo de alunos agarrados uns aos braços dos outros tentando se orientar para chegar a plataforma B - eram todos cegos. Novamente a imagem da professora reapareceu.
Para minha surpresa, reconheci uma pessoa em meio ao grupo que conversava animadamente sobre não sei o quê. Fiquei petrificada. Reconheci entre eles uma jovem senhora. Ela fora minha colega de trabalho, numa das primeiras escolas aqui em Florianópolis. Na época, me recebera de uma forma muito carinhosa eu me sentia "em casa" com ela. Em nossos momentos de descontração brincava que ela era minha segunda mãe - e era. Convivemos por dois anos e depois nos afastamos. Coisas da correria do dia-a-dia e falta de cultivar as amizades - pura negligência. Por um breve momento me senti desconfortável com aquela situação. Eu não consegui me mover, só olhava. No entanto, ela caminhava com sua bengala à frente e orientava os demais deficientes visuais com uma maestria de professora que era. Sorria, aquele sorriso aberto, franco, amoroso e, mesmo sem poder ver seus olhos, escondidos atrás de um belíssimo óculos escuro, podia imaginar seus olhos também sorrindo. Podia até ver o brilho em seus olhos, mas lá no fundo uma tristeza escondida. Essa imagem misturou-se com a outra da minha professora com os olhos tristes, mas que no fundo escondiam a alegria de quem está descobrindo um outro mundo - um novo mundo.














(Crédito: Karin Hildebrand Lau/Shutterstock.com)

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