7 de setembro de 2016

Eu morava em uma cidadezinha que tinha uma sanga

Meu marido e eu estávamos discordando sobre a autoria de uma música, fui pesquisar e na busca apareceu a música "Riacho" da Banda Barbarella que não tinha nada a ver com o que procurava.
Mas a música desencadeou uma série de recordações.
A primeira recordação refere-se ao local onde passei boa parte da minha infância - na casa da minha mãe.
Na frase "Moro numa aldeia que tem um riacho" lembrei-me que ao lado da casa de minha mãe tem um riacho, mas no oeste chamamos de "sanga".
Quando criança passava muito tempo brincando nas pedras. Uma das favoritas era brincar de casinha em algumas pedras que ficavam na superfície e formavam uma espécie de platô. Pegava a escova no tanque, escorregava o barranco e descia até às pedras. Ficava por horas limpando - esfregando as pedras e recolhendo plantas para colocar na casa. Mais tarde descobri que aquelas enormes touceiras que no final da tarde exalavam um perfume delicioso eram chamados de "lírios do brejo".
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A brincadeira terminava quando era hora da Dona Maria chegar do trabalho, dos meus irmãos me jogarem água ou um convite para pescar lambaris.
O primeiro era uma correria, pois sempre ficava uma tarefa por terminar que fora interrompida pela brincadeira e nas pedras o tempo era diferente, era o tempo dionisíaco, não era o do relógio.
Quando meus irmão apareciam instalava-se uma correria do tipo "salve-se quem puder".
E o convite para a pescaria era irrecusável, pois a pescaria era sempre um evento. Reuníamos eu, meus irmão e mais alguns amigos (eu era uma das poucas meninas que descia na sanga), pegávamos as redes, feitas de sacas de ráfia que vinham com batatinha ou cebola compradas na Argentina e lá íamos.
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Não utilizávamos iscas, pois tinha tantos lambaris que uma passada de rede garantia muitos peixes.
Mas haviam os "invasores". Outras crianças apareciam para pescar em nosso território e eram gentilmente convidados a se retirarem. O "gentilmente" não era tão gentilmente. Punhados de barro faziam um estrago em um grupo de pescadores invasores.
Depois da pescaria, alguém era sorteado pra limpar os peixes e deixávamos os peixes na geladeira de um dos pescadores até garantir uma quantidade suficiente para uma fritada. Outras vezes a divisão acabava em briga e alguém dizia: "Pode ficar com tudo! Eu não pesco mais". Isso normalmente durava uma semana.
Durante anos brincamos na sanga, nunca ninguém teve nenhum tipo de alergia ou pegou qualquer doença.
Nos dias de hoje isso não é possível mais de se fazer. A sanga continua lá.
Correndo entre um muro de pedra construído para evitar que as casas fossem alagadas nos períodos de chuva.
Quando estou por lá, adoro sentar à sombra, sentir o frescor do ambiente, olhar o curso da água e (re)lembrar da infância. Do quanto éramos felizes com tão pouco.
Ao dormir ou ao acordar ouvir o murmúrio da água escorrendo entre as pedras. Acalma.
Contudo, ao mesmo tempo pensar que hoje não podemos sequer colocar os pés na água, pois a sanga agora poluída acolhe e recolhe o esgoto de quase meia cidade.
É uma pena que as coisas mudaram de forma tão drástica e, hoje, por mais tempo que passe observando as águas não consigo ver nenhum lambari saracoteando faceiro na água.

Um comentário:

  1. Adorei o relato!Lembrei-me que nós ficávamos por horas brincando com argila, na sanguinha que corta a terra do pai e da mãe,"barro branco", nós dizíamos. Ali, a brincadeira preferida da Téia e eu era fazer louças e equipamentos para a cozinha da nossa casinha!Vez em quando um chinelo era levado rio a baixo, um verdadeiro desespero.

    A música do Barbarela, "gourmetizou" a frase "moro numa aldeia que tem um riacho".

    Beijos.

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